Em plena Idade Média, na noite de 28 de janeiro do ano 814, nascia em
uma família de camponeses, na aldeia alemã de Ingelheim, uma menina
chamada Joana. Quando adulta, ela seria a única mulher a exercer a
função de papa na história da humanidade. Filha de um missionário da
Igreja Católica, a menina foi criada sob os rígidos ditames da religião,
que naquela época reservava às mulheres poucos direitos e lhes impunha
muitas proibições, como a alfabetização. Joana viveu questionando os
cânones de seu tempo, aprendeu o latim e o grego antes dos 10 anos de
idade e aos 16 adotou a identidade do irmão morto numa batalha. Tudo
isso para assumir funções eclesiásticas num monastério beneditino.
Tornou-se papa entre 851 e 853 e morreu ao dar à luz uma criança quando
tinha 42 anos.

A sua curiosa e desconhecida trajetória já foi levada às telas na década
de 1970 em um filme protagonizado pela atriz Liv Ullman. Agora, volta
com mais apelo em uma produção alemã dirigida pelo cineasta Sonke
Wortmann. O filme baseia-se no livro "Papisa Joana" (Geração Editorial),
da escritora inglesa Donna Woolfolk Cross, que acaba de ser lançado no
Brasil. A autora construiu um romance sustentado por informações obtidas
em arquivos da Igreja e reconstituiu a vida de Joana. Segundo a autora,
a história da papisa era considerada uma realidade até o século XVII,
quando disputas religiosas teriam levado o Vaticano a ordenar a
destruição das provas de sua existência. Um dos registros é um
julgamento ocorrido em 1413 em que João Hus, acusado de heresia, cita em
sua defesa a falibilidade do papa e para sustentar sua tese menciona o
fato de Joana ter sido eleita pontífice mesmo sendo uma mulher.
Além de obras de arte que retratam a papisa, há um outro dado
intrigante: João XX teria ordenado uma investigação rigorosa nos
documentos eclesiásticos sobre Joana. Isso em 1276. Após a conclusão dos
estudos, ele mudou seu nome para João XXI, reconhecendo o papado da
religiosa.
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Papisa Joana no confessionário... |
Na história criada pela autora, Joana é movida por um forte pragmatismo e
inteligência. Questiona os dogmas da Igreja e conquista a simpatia de
um sábio grego que lhe concede o privilégio de estudar numa instituição
de ensino. Apesar de ser constantemente perseguida por colegas e
autoridades, ela consegue permanecer um ano na escola até que o ataque
de um exército bárbaro ao seu vilarejo extermina a maioria de seus
habitantes. Entre as vítimas está seu irmão, identidade que ela assumiu
para seguir em frente com os seus objetivos. Joana cortou o cabelo,
mudou suas vestes, fingiu ser homem e passou a ser chamada João Ânglico.
É com esse nome que se tornou conhecida por seus supostos dons de
evitar a transmissão da hanseníase: uma de suas providências, verdadeiro
sacrilégio na época, foi fazer com que cada pessoa na missa molhasse na
taça de vinho a hóstia com a qual comungaria, abolindo assim o hábito
secular em que todos os fiéis bebiam um gole do vinho no mesmo
recipiente. A história correu as aldeias, ela passou a ser conhecida em
diversas regiões da Europa e em alguns anos tornou-se a médica do
próprio papa Leão IV.
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Papisa Joana dando a luz em plena rua... |
É assim que conquista a confiança de seus colegas até ser consagrada por
unanimidade a nova pontífice de Roma. Ela traz de seu passado, porém,
um amor proibido que reencontra quando já exerce o mais alto cargo da
Igreja. Engravida, consegue disfarçar essa condição ao longo de nove
meses (aparecendo raramente em público), mas é desmascarada ao dar à luz
uma menina na rua, enquanto se dirigia para a Igreja de Latrão, entre o
Coliseu de Roma e a Igreja de São Clemente. Joana e a filha morrem no
momento do parto - ela encerra assim o seu papado de dois anos, um mês e
quatro dias. A dúvida sobre sua existência talvez nunca se desvaneça
totalmente, já que se trata de um período histórico marcado pelo terror,
pelo obscurantismo e pelas guerras. Sua trajetória foi lembrada pela
primeira vez no século XIII pelo escritor Esteban de Borbón, porém sem
provas. Em 1886, ela voltou a ser difundida pelo grego Emmanuel Royidios
(traduzido para o inglês por Lawrence Durrell). A autora Donna lança
mão da criatividade, mas garante que conteve os seus "saltos
imaginativos": "Os detalhes do século IX com que compus o cenário do
livro, por estranhos e selvagens que pareçam hoje, são todos
verdadeiros." (revista Isto É - Agosto - 2009).